A política monetária no Brasil é caracterizada por manter o juro básico da economia — a taxa Selic — em patamar elevado durante décadas, contribuindo, assim, para a elevação da dívida bruta devido à incorporação crescente de juros nominais. Desde a implantação do Plano Real, ela oscilou, em termos nominais, de 53,1% ao ano em 1995 até uma taxa histórica de 2% ao ano em agosto de 2020, voltando a se elevar para 3,5% em maio de 2021 (Gráfico 1).
Entre 1994–1999, a estabilização dos preços se deu mediante a âncora cambial, exigindo os juros elevadíssimos para atrair capitais externos. A implantação do regime de metas de inflação, a partir de 1999, também exigiu credibilidade para controlar as expectativas de mercado, assim como sacramentou uso da taxa de juros para manter o controle inflacionário.
A partir de 1999, sucessivos governos de matizes diferenciados, pelo menos no discurso político, conduziram a mesma política monetária, mantendo a média da Selic nominal em 16% ao ano (1995–2020). Esse padrão de juros elevados passa a contrastar com os principais bancos centrais do mundo, principalmente num contexto de flexibilização monetária e de taxas básicas reduzidas após a crise internacional de 2008.
Chega ser paradoxal que a redução da taxa básica no Brasil tenha ocorrido mais fortemente durante a gestão do Ministro Guedes, adepto da escola de Chicago. No entanto, convém registrar duas questões relevantes. Primeiro, a queda da Selic se iniciou em 2016, atingindo o patamar mínimo em 2020. Segundo, a taxa implícita da dívida permanece elevada para os títulos públicos de longo prazo.
Como uma reação inevitável do mercado financeiro brasileiro, pressionado por rendimentos reais negativos na renda fixa, os tambores rufaram em nome de uma nova taxa de juros neutra, obviamente maior. A cada nova reunião do Copom, muita mídia é gasta para justificar a elevação da Selic (2,75% ao ano e, agora, 3,5%).
No modelo teórico, um excesso de produto acima do potencial pressionaria a inflação, obrigando o Banco Central (Bacen) a elevar a taxa de juros para conter o excesso de demanda, forçando a queda do nível de preços. Todavia, como bem alertou Lara Resende (2021a; 2021b) em artigos recentes: qual é o foco teórico do excesso de demanda ou da elevação das expectativas futuras, se há desemprego elevado e capacidade ociosa em setores da economia, bem como enormes reservas em dólares depositados no Bacen?
Se as expectativas do mercado estão infladas por um risco de “dominância fiscal”, qual é a coerência em elevar a taxa básica, a qual pressionará a despesa financeira do Tesouro Nacional? Tudo isso, soa muito contraditório com as evidências.
De forma crítica e consistente, esse economista vem publicando livros (cito Juros, Moeda e Ortodoxia) e artigos no Valor Econômico, questionando os fundamentos da moderna macroeconomia, seja ela neoclássica, seja novo clássico. Ele argumenta que o velho postulado da teoria quantitativa da moeda foi sepultado, pois vem ocorrendo a flexibilização quantitativa na política monetária executada pelos principais bancos centrais do mundo e a inflação continua estável na Europa, Estados Unidos, Japão etc.
Também sugere que o excesso de dedução matemática inclusa nos atuais modelos teóricos são abstrações ideais, de cunho conservador, sendo que a hipótese de “expectativas racionais” reflete a radicalização da tese de que o “mundo das ideias” se sobrepõe a realidade. Como já disse Joan Robinson, os modelos teóricos de análise parcial ou geral trabalham com relações estacionárias de equilíbrio. Dadas as equações gerais, a postulação de equilíbrio (taxa de juros neutra, desemprego natural etc.) é um processo lógico que só existe aos olhos de quem constrói o modelo.
Em termos do debate teórico, uma das reflexões recentes de Lara Resende (2017, p.133-134) é revisitar as novas contribuições à macroeconomia, como a Teoria Fiscal do Nível de Preços. Esta última interpreta a conhecida restrição orçamentária do governo como uma condição de equilíbrio. A igualdade entre o déficit nominal e o valor presente dos resultados primários futuros não é apenas determinado pelo resultado primário, mas também pelo nível de preços que atua em ambos os lados da igualdade.
O papel da inflação seria reduzir o valor real do passivo nominal (dívida pública e moeda), havendo uma nova causalidade para a determinação do nível de preços. Os preços determinam a inflação e não ao contrário como supõe o monetarismo. A âncora do nível de preços e da inflação é de base fiscal, sendo o papel da política monetária interferir na taxa de juros básica e, assim, em toda sua estrutura a termo.
A migração dos bancos centrais para o regime de metas de inflação, em substituição ao controle dos agregados monetários, é uma prova empírica de que a plena postulação monetarista não encontra mais respaldo na execução da política monetária. Portanto, tais questionamentos negam os fundamentos da argumentação do monetarismo, que é ainda ensinado como uma verdade universal e serve de guia ideológico para o mercado financeiro.
Voltando ao caso concreto do Brasil, em recente Nota Técnica (2021), o Ministério da Fazenda calculou a economia fiscal obtida pela queda dos juros no Brasil entre novembro de 2016 e dezembro de 2020. A taxa de juros implícita da dívida líquida do governo central caiu de 43,4% ao ano em janeiro de 2016 para 8,9% ao ano em dezembro de 2020, representando uma economia de R$ 900 bilhões em apenas 50 meses.
Informações adicionais são encontradas nas estatísticas fiscais disponibilizadas pelo Banco Central. Nelas aparecem dimensionados o montante de juros nominais pagos e/ou incorporados à dívida bruta do governo geral (DBGG) e os fatores determinantes de sua expansão.
Fazendo-se um balanço dos últimos 15 anos (2006–2020), as estatísticas revelam que a dívida bruta saltou de R$ 1,3 trilhão em 2006 (55,5% do PIB) para R$ 6,6 trilhões ao final de 2020 (88,8% do PIB), expresso em vertiginoso incremento de R$ 5,3 trilhões.
Os fatores que condicionaram à sua expansão são: a incorporação de juros nominais (R$ 4,4 trilhões); as emissões líquidas de títulos mobiliários (R$ 555 bilhões); o reconhecimento de dívidas e/ou privatizações (R$ 52,7 bilhões); e a política cambial de compra de reservas internacionais (R$ 232,4 bilhões). Assim, a incorporação de juros nominais é responsável por 84% da expansão da dívida bruta (Tabela 1 do Anexo). Esses juros alcançam uma média de 5,8% do PIB, com uma estimativa de custo médio na ordem de 10,9% ao ano, expressa em uma Selic média nominal de 10% ao ano para o período em questão (Tabela 2 do Anexo).
Um dos pontos centrais dos mencionados artigos, reconhecido pelo citado autor, é que a elevação dos juros aumenta a despesa financeira do orçamento fiscal, logo serve como agravante ao desequilíbrio das contas públicas. Lembre-se que o setor público brasileiro registrou resultados primários positivos (2002–2013) e mesmo assim o déficit nominal continuou elevado.
Tudo isso parece óbvio e já amplamente debatido. Contudo, boa parte dos economistas e da sociedade insistem em identificar o problema do déficit público quase que exclusivamente relacionado aos gastos públicos. Quando se observa os montantes de juros nominais (em média R$ 320 bilhões/ano), é bom lembrar que ele é apropriado, em parte, pelos detentores de riqueza líquida. Como bem observa Lara Resende (2021b): “O aumento dos juros é uma transferência direta do Estado para os detentores da dívida, para aqueles a quem a fortuna, vamos dizer assim, deu renda superior às suas necessidades e lhes permitiu acumular riqueza em títulos públicos”.
Isso representa um fato marcante no relacionamento que se estabelece entre o Tesouro Nacional e o Bacen, já que a expansão do passivo nominal do governo é determinada pelo crescimento da despesa financeira e a taxa de juros é a sua responsável. Com juros elevados não há expansão consistente da demanda agregada e nem ambiente para os investimentos necessários ao crescimento econômico.
Registro, contudo, que os dois parágrafos anteriores não podem ensejar uma interpretação marxista, bem conveniente ao movimento sindical. Em recente discurso o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, disse que Wall Street não construiu a América. Poderia ser acrescentado que, provavelmente, os bancos emprestaram os fundos necessários ao desenvolvimento, mas certamente não conduziram a destruição criativa.
Transpondo tal assertiva ao caso brasileiro, enquanto continuarmos presos à política monetária conservadora com os juros e a sua estrutura a termo, o fluxo de caixa da economia real continuará deprimido, criando-se uma barreira objetiva ao investimento privado. Essa é uma conclusão de inspiração keynesiana relembrada por Lara Resende.
De um lado, mantida a lógica de que “r>g”, sempre haverá uma reforma ou corte adicional a ser realizado sobre o gasto público, objetivando manter os fundamentos da restrição orçamentária do governo. Implícito nessa lógica está o “esquecimento” dos juros nominais, afinal a geração de resultados primários positivos garante o pagamento devido aos detentores de riqueza.
De outro, no campo da oposição ao sistema de mercado ou do populismo fiscal, sempre haverá a interpretação equivocada de Keynes: a elevação dos gastos públicos como a solução milagrosa à substituição da iniciativa privada e ao fortalecimento do capitalismo de Estado, ou seja, somente se vislumbra o “crowding in”.
O peso do passivo nominal dos governos e as despesas com juros continuam a impactar os orçamentos fiscais, ainda que tenha decaído o serviço da dívida nos anos recentes devido à queda da Selic. Além disso, há outros fatores que dificultam o equilíbrio orçamentário. A expansão dos déficits previdenciários foi, em parte, decorrente de um fenômeno demográfico e por problemas intrínsecos ao regime de repartição simples. Os contínuos resultados negativos da seguridade social da União cresceram devida à insuficiência de receita disponível posta à sua disposição para executar o que está previsto na Constituição de 1988. Os orçamentos fiscais são rígidos devido às regras de vinculação constitucionais.
O expediente básico usado pela política fiscal tem sido corte constante de gastos públicos e a elevação da carga tributária em todos nos níveis de governo. Governos subnacionais relevantes quase entraram em default para cumprir os acordos de dívida e acumulam passivos insustentáveis. A partir de 2014, várias leis complementares de refinanciamentos foram aprovadas e o problema, ainda, permanecerá por mais 10 anos ou mais.
Em resumo, tudo o que está dito acima já foi escrito e reescrito. No entanto, a mídia e o mercado continuam presos ao esquema teórico conservador, cujo resultado tem custado décadas de baixo crescimento. A independência do Banco Central, recentemente aprovada, foi um marco importante no processo de fortalecimento das decisões de política monetária, não podendo ser entendida como uma captura pelo mercado financeiro. Numa agenda modernizadora, poderia ser levada adiante a proposição de depósitos remunerados no Bacen e a paulatina redefinição do uso das operações compromissadas.
Fundamentalmente, caberia ao governo central e ao Bacen encontrar uma solução ótima entre a pressão do mercado financeiro em torno da taxa básica de juros no Brasil e a necessidade premente dos governos reduzirem seus passivos. A inflação poderia resolver o problema desses passivos, mas tem um custo social muito elevado para os mais pobres.
Os investidores não compram títulos públicos de governos com risco fiscal elevado. Contudo, a estrutura de juros no Brasil precisa estar em sintonia com a sustentabilidade da dívida pública. Os melhores quadros e executivos atuam na autoridade monetária, cabendo a eles indicarem um novo caminho, além do regime de metas de inflação, que esteja em sintonia com o papel assumido pelos bancos centrais no mundo. O governo Biden parece estar redefinindo um novo papel para a política fiscal, sendo que seus resultados serão avaliados com o passar do tempo.
Artigo de autoria do economista, auditor-fiscal aposentado da Secretaria da Fazenda do RS, Roberto Balau Calazans, publicado no blog "FinançasRS". Para acessar o artigo CLIQUE AQUI