Roberto Rodolfo Georg Uebel
Economista, professor de Relações Internacionais
Corecon-RS Nº 8074
O cenário mundial será o mesmo no período pós-pandemia?
Definitivamente não, e isso começa a se desenhar desde antes da pandemia, onde já observávamos uma transição dos polos de poder, as hegemonias, no Sistema Internacional. O que muda com a eclosão da pandemia da Covid-19 é a intensidade desta transição e a rapidez com que os modelos econômicos e políticos, anteriormente considerados como válidos e referenciais, deixaram de existir ou se sustentar. Vide-se o caso dos Estados Unidos, país que se mostrou muito vulnerável à pandemia, sobretudo no seu controverso sistema de saúde e nas próprias políticas econômicas propostas pelo governo federal, que entraram em choque com as políticas estaduais. Já nestes primeiros meses de pandemia, foi possível identificar uma performance muito eficaz de nações como China, Coreia do Sul, Japão, Singapura e Taiwan no combate aos efeitos sanitários e econômicos da Covid-19, o que aponta para o que os economistas e analistas internacionais chamam de um mundo pós-ocidental, ou seja, as decisões do cenário mundial cada vez mais dependentes dos movimentos geopolíticos e geoeconômicos daqueles países mencionados, especialmente do Leste Asiático. Quanto ao Brasil, uma última constatação: o país está em grande descrédito internacional, inclusive entre seus parceiros tradicionais e novos, como Israel e Índia, o que causará impactos muito negativos para os setores de exportação da economia brasileira, é um fato inédito – e grave – em nossa história diplomática desde a proclamação da República, cuja recuperação de imagem e confiança internacional poderá levar uma década ou mais.
O que muda no cenário da hegemonia dos blocos internacionais?
Como estamos em um processo de transição hegemônica, acelerado pela pandemia da Covid-19, velhas e novas estruturas do Sistema Internacional e seus blocos coexistirão ainda por um tempo, assim como no pós-Segunda Guerra Mundial, em que a insuficiente Liga das Nações coexistiu por um ano com a Organização das Nações Unidas. Como mencionado, percebe-se cada vez mais um posicionamento mais firme nas decisões globais por parte da China e outras nações do Leste Asiático, como Japão e Coreia do Sul em maior grau, e Taiwan, Singapura e outros países em menor nível. Quem sairá fortalecida também no cenário pós-pandemia será a União Europeia, que recém ingressara em um trauma do Brexit - hoje praticamente esquecido - e por meio do seu sistema de integração regional, conseguiu evitar um colapso econômico e sanitário ainda maior. Vejo com muita preocupação o Mercosul, que sairá desta crise, vide-se os posicionamentos prévios anti-integração por parte do presidente brasileiro, e as próprias medidas tomadas durante a crise pelos nossos vizinhos, que têm se afastado cada vez mais do incerto e instável Brasil, hoje com grande descrédito regional e internacional. Certamente teremos um cenário mundial multipolar em que China, Japão e Coreia do Sul, os pós-ocidentais, junto com a União Europeia, terão maior proeminência. Também é possível perceber um processo de integração muito avançado na União Africana, uma vez que os indicadores e efeitos da pandemia foram bem controlados e mitigados naquele continente. Não me surpreenderia uma posição cada vez mais consolidada do G20 como bloco decisório, em substituição ao G7. Ainda chamo a atenção para o reposicionamento que organizações e blocos como a OCDE, OTAN e Prosul, deverão tomar para se manterem ativas no mundo pós-pandemia.
O que muda na guerra comercial entre China e EUA?
Eu acredito que a aquela guerra comercial entre China e EUA, que conhecíamos, ficou no passado anterior à pandemia, o que não significa, necessariamente, que não existirão mais contenciosos econômicos e comerciais entre os dois países. Entretanto, esta crise permitiu comprovar aqueles que ainda desconfiavam do papel de dependência mútua de Beijing a Washington, e vice-versa, e do caráter político, especialmente por parte dos Estados Unidos, conferido ao antigo contencioso comercial. Em questão de poucas semanas, vimos como os norte-americanos dependem de produtos chineses, sobretudo da indústria de saúde, como máscaras, EPIs e respiradores mecânicos, e como os chineses dependem de commodities norte-americanas, como a própria soja produzida naquele país, como uma reserva de emergência, dadas as incertezas no seu fornecedor principal, o Brasil, que, por declarações de membros do governo federal, angariou a antipatia das lideranças chinesas, fato inédito na história diplomática brasileira. Independente do cenário eleitoral que se desenhar em novembro nos Estados Unidos, o futuro presidente norte-americano saberá que a China é cada vez mais indispensável para a manutenção do Sistema Internacional.
O que muda nas decisões do Brexit e Comunidade Europeia a partir desses acontecimentos?
O Brexit também parece estar no passado do Reino Unido, que viveu um drama nacional com elevado número de óbitos por causa da Covid-19, doença que atingiu também o príncipe Charles e levou para a UTI o primeiro-ministro Boris Johnson, e da União Europeia, que sairá mais fortalecida desta pandemia, justamente pelo pilar da integração regional. Em que pese estar no passado, o processo de divórcio entre Londres e Bruxelas deverá seguir o seu curso normal, obviamente, com cronogramas revisados, porém, com consequências muito claras aqueles britânicos que viram que a integração ainda é a melhor resposta para se combater uma pandemia e uma crise econômica sem precedentes.
Como fica a hegemonia na Europa no período pós pandemia?
As posições ficaram muito claras no tabuleiro europeu, tanto em questões econômicas, como sanitárias. Países que adotaram rapidamente medidas de isolamento social, como Alemanha, Áustria e Portugal, saíram antes da crise e começaram uma transição para a vida normal, além de minorarem os efeitos econômicos. Países que não obedeceram aos conselhos de cientistas, como Itália, Espanha e Suécia, além de viverem dramas nacionais com o número de óbitos e infectados, demorarão mais para se recuperarem economicamente. Outras nações como Reino Unido e França, antes potências hegemônicas europeias, por demorarem a adotar medidas de distanciamento social, também sofrerão os impactos políticos da pandemia. Apesar disso, a União Europeia se mostrou eficiente quanto às suas instituições políticas e financeiras, que já anunciaram fundos bilionários para a reconstrução dos países do bloco e fora deste. Percebo um papel cada vez maior de Berlim nas decisões da União Europeia e nos rumos do bloco.
Já se pode medir alguma tendência nas eleições norte-americanas com a crise da Covid-19?
A pandemia da Covid-19 atingiu as primárias do Partido Democrata no seu auge, quando a disputa se acirrava entre o ex-vice-presidente Joe Biden e o senador Bernie Sanders. Biden acabou conquistando a maioria dos delegados e já recebeu o apoio de Sanders e a benção política de Obama e do establishment democrata para enfrentar Donald Trump em novembro. É muito difícil de mensurar qual será o impacto resultante da pandemia nas eleições do final do ano, uma vez que Trump se mostrou muito aquém do desejado para mitigar os efeitos econômicos, financeiros e sanitários da Covid-19, com dezenas de milhares de óbitos, mais do que a própria Guerra do Vietnã vitimou, preferindo salvar bancos do que injetar mais recursos no insuficiente sistema de saúde norte-americano. Entretanto, Biden não possui unanimidade nem no seu partido, muito menos nacionalmente. Outra variável nesta questão é até quando o distanciamento social continuará nos Estados Unidos, o que poderá impactar os eventos de campanha, as convenções nacionais e os próprios debates, que são os pilares das eleições norte-americanas. Vejo o eleitorado norte-americano muito dividido com as duas opções e extremamente insatisfeito com as políticas federais adotadas de combate à pandemia. Assim como no Brasil, sairão fortalecidos os governadores que agiram rapidamente nas medidas de isolamento social, socorro aos empregos e empresas e na reestruturação dos seus serviços de saúde.
De que forma a crise da Covid-19 afeta a hegemonia do petróleo no oriente médio e, mais especificamente, na disputa entre Arábia Saudita e Rússia?
Há duas semanas tivemos um fato sem precedentes na história, desde 1946, que foi a cotação negativa do preço do petróleo nos EUA, que chegou a U$ -37,63, tudo isso como reflexo da diminuição da demanda global por esta commodity energética. Afirmaria, neste momento, que a disputa entre Arábia Saudita e Rússia está em stand-by, tanto pela demanda diminuída como pelas questões domésticas impostas pela pandemia. Não vejo uma mudança na hegemonia do petróleo no Oriente Médio, mas sim numa nova percepção sobre a necessidade desta commodity em âmbito internacional, seja como combustível fóssil, seja como único produto da pauta de exportação, de Riade até Caracas. A pandemia trará diversos questionamentos, e um deles será justamente até que ponto o Sistema Internacional ainda dependerá do petróleo em suas matrizes econômicas e energéticas. É tempo de os governos nacionais repensarem a sua dependência em uma única commodity e buscarem alternativas energéticas, como a própria Alemanha, Japão e China têm desempenhado.